Para a natureza, em termos biológicos, ser criança é uma condição igual a toda espécie humana. Com pequenas variações, os indivíduos humanos são gestados ao longo de nove meses quando nascem, para sobreviverem necessitam completamente dos cuidados dos seres adultos de sua espécie demoram em média um ano para aprender a andar levam mais alguns para serem capazes de se comunicar, pronunciando frases completas e iniciam a fase da puberdade por volta de 11, 12 anos.
Com algumas exceções, grande parte dos indivíduos da espécie humana entra na fase adulta com seu corpo desenvolvido e capaz de gerar outros de sua espécie e como os demais seres vivos, se seu ciclo vital não for interrompido de modo abrupto, amadurece, envelhece e morre.
Entretanto, quando falamos da fase da infância no ciclo de vida dos seres humanos, não pensamos apenas em seus aspectos biológicos.
Ao apreciarmos diferentes culturas e sociedades ao longo do tempo e do espaço veremos que o modo como a sociedade adulta percebeu e percebe, tratou e ainda trata a infância, não é e não foi sempre o mesmo.
Na sociedade brasileira atual, apesar de a legislação definir o que é ser criança e também os direitos reservados à infância, nem todas as crianças brasileiras vivem a infância da mesma forma. Em outras palavras, "nem sempre ser criança é ter direito a viver a infância", seja pela exclusão social e exploração de seu trabalho ou pela exposição dela às rotinas, aos valores e às práticas do mundo adulto.
Esse é o tema tratado no documentário A Invenção da Infância que aborda historicamente a construção moderna do conceito infância (a partir da Renascença) focando a discussão sobre as diferenças na experiência de ser criança no Brasil da atualidade.
2. Antes e depois da seção de cinema
O sensível documentário de Liliana Sulzbach produzido há quase uma década, ainda é muito atual. Alguns dos aspectos que a diretora destaca em seu curta sobre as disparidades vividas pelas crianças brasileiras de diferentes grupos sociais em diferentes regiões do país tornaram-se, ao longo desses oito anos, mais polarizados.
A discussão central deste documentário é o "ser criança" do ponto de vista de várias crianças depoentes pertencentes a diferentes grupos socioeconômicos, moradoras de centros urbanos e de regiões agrárias com e sem direito à educação de qualidade, exploradas como força de trabalho e/ou hiperestimuladas por meio de rotinas estafantes que as afastam de viver a infância como uma fase especial da vida.
O documentário está organizado em blocos de discussão sobre a experiência de ser criança no Brasil. Cada vez que a voz off (narração de Kiko Vaz) aparece, ela demarca um dos blocos de discussão, a saber: a gênese do conceito de infância e seu desenvolvimento até os dias atuais, forçando os expectadores a questionarem suas concepções sobre a infância com as experiências vividas pelas crianças brasileiras em diferentes realidades sociais.
Nos tópicos seguintes nos deteremos a explorar esses blocos narrativos e as problematizações que eles trazem sobre a situação da infância no Brasil.
Uma boa maneira de debater este curta é atentar para a exposição didática, sensível e problematizadora realizada pela diretora em cada um dos blocos.
3. Conhecendo um pouco sobre o contexto do nascimento do conceito moderno de infância e suas transformações na atualidade
"Ao inventar a infância, a Modernidade cria a idade de ouro de cada indivíduo. Fase em que a vida será perfeita, protegida e tranqüila, antes de ser tomada pelas exigências do trabalho. Época ideal de nossas vidas, em que ser criança é não ter qualquer outro compromisso que vá além do gozo puro e simples de sua inocência."
(Trecho da voz off no documentário A Invenção da Infância).
O historiador Philippe Ariès, especialista em história social da criança e da família demarca duas concepções características da infância: uma pertencente às sociedades "tradicionais" ou pré-industriais e outra criada a partir dos séculos XV-XVI e que se sedimentou nas sociedades industriais.
Segundo Ariès, nas sociedades tradicionais:
"A duração da infância era reduzida ao seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem não conseguia bastar-se a criança então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, partilhava de seus trabalhos e jogos. (...) A transmissão dos valores e dos conhecimentos e de modo mais geral, a socialização da criança, não eram portanto nem asseguradas nem controladas pela família. (...)
A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazê-las."
(Ariès, 2006: IX)
Nas sociedades tradicionais descritas por Ariès, as famílias não eram o lugar de excelência da afeição. Isso não significa que o amor estava ausente e sim que as trocas afetivas se davam em comunidades mais amplas (vizinhos, amigos, outros parentes, criados, amos, crianças mulheres, homens).
Já nas sociedades industriais, especialmente em fins do século XVII e início do XVIII, a família nuclear passa a ocupar o lugar de excelência da socialização da criança, assim como o de afeição:
"A família começou então a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância, que a criança saiu de seu antigo anonimato , que se tornou impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor, que ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes, e que se tornou necessário limitar o seu número para melhor cuidar dela."
(Ariès, 2006: XI).
Nesse contexto a escola, em sua forma moderna, surge como uma instituição para modelar e preparar o indivíduo (visto como frágil e passível de transformação) até ser permitida a sua entrada no mundo adulto.
A escola tornar-se-ia o meio de separação da criança do mundo adulto "mantida à distância em uma espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo" (Ariès, 2006: X).
Seguindo os caminhos traçados por Ariès, Nóvoa recorda-nos que a civilização medieval, diferente da civilização clássica e diferente da educação escolarizada dos tempos modernos desconhecia a idéia de educação no sentido de uma ação intencional exercida pelo mundo adulto sobre suas crianças.
Segundo Nóvoa, entre os medievais o processo de socialização dos indivíduos se dava por meio da "impregnação cultural", não havendo uma intenção implícita de educar. Entre os gregos e romanos da Antiguidade clássica, por exemplo, a educação de crianças e jovens do sexo masculino objetivava formar o cidadão ou o soldado-cidadão ou na escolarização moderna, cuja gênese pode ser demarcada na Modernidade, que buscava formar o cidadão do Estado-Nação.
Para Nóvoa "a reaparição da preocupação educativa", ocorre na Idade Moderna devido a uma série de fatores: o renascimento comercial e cultural no Ocidente que fez emergir "um modo de vida e uma civilização urbana", protagonizados por um novo sujeito histórico: a burguesia.
Esse novo grupo social introduz a noção de que o mundo é mutável. Essa idéia de que a natureza e a humanidade são passíveis de transformação era estranha aos medievais que construíram uma sociedade relativamente estática e estável, organizada em seus estamentos demarcados pelo nascimento e para quem a concepção de futuro estava no mundo pós-morte, na valorização da "salvação no além". Segundo Nóvoa:
"A ação da burguesia, classe revolucionária por excelência, vai ser orientada por um conceito novo que será totalmente incompreensível para o homem da Idade Média: o de plasticidade. Este conceito forma um todo com a idéia de que o mundo é moldável, de que o homem é transformável: portanto, de que se pode fazer uma sociedade diferente." (Nóvoa, 1991: 111)
A escola moderna nasce nesse contexto, com o reaparecimento das preocupações educativas e de instituições voltada para o ensino da infância e juventude. O conceito de criança e infância que a legislação e o senso comum guardam até os dias atuais foram engendrados naquele período.
Ao encarar a criança como um projeto a ser desenvolvido, modelado, civilizado, um corpo dócil, passível de transformação, associado ao surgimento de um universo cultural dominado pela escrita
a sociedade da Idade Moderna tornou a escola o meio primordial de educação.
A gênese do processo de escolarização, associada à nova concepção de infância da época Moderna não escapou à percepção da diretora do documentário A invenção da Infância:
"Com a invenção da imprensa por Gutenberg, ler e escrever passa a ser fundamental para se tornar "gente grande". Antes dele, a transmissão do conhecimento se dava basicamente de forma oral: o que adultos falavam, crianças entendiam. A imprensa, ao democratizar o acesso aos livros e à cultura escrita, cria uma nova situação: as crianças terão primeiro que aprender a decifrar os códigos secretos da escrita para ingressar no universo dos adultos."
(Trecho de voz off no documentário A Invenção da Infância)
Mas a diretora vai além. Ela consegue historicizar e problematizar o conceito moderno de infância e também abordar suas recentes transformações.
Nas últimas décadas do século XX, a partir do surgimento de novos meios de comunicação, especialmente o rádio e a televisão, a cultura audiovisual suplanta a cultura letrada e escrita, igualando novamente os mundos dos adultos e das crianças.
Todas as crianças da atualidade, incluindo as que vivem em regiões empobrecidas estão sujeitas aos apelos constantes e freqüentes promovidos pelas propagandas que instigam o consumo.
"Hoje nós vivemos numa cultura da vaidade, que é contrária à cultura do auto-respeito. As pessoas tendem a achar que o próprio valor depende não da moralidade, mas da vaidade.
Muito do consumo hoje, não é para usufruir bens, o consumo é associado às marcas de vencedores, consome-se para aparecer ao outro."
(Yves De La Taille em palestra para os professores no Centro de Estudos da Escola da Vila, SP- SP)
Desde a mais tenra idade os indivíduos são capazes de entender as inúmeras mensagens veiculadas por meio de sons e imagens que transmitem e estimulam o consumo como um valor.
Aos adultos e às crianças socialmente incluídas as indústrias criam inúmeros mercados: dos automóveis às residências de alto padrão, passando pelo universo infanto-juvenil por meio dos produtos tecnológicos (games, ipods, celulares, computadores e outros brinquedos eletrônicos), roupas, calçados, alimentos etc.
Diferentes grupos e corporações por meio de intensa propaganda estimulam as pessoas com poder aquisitivo a abraçarem marcas e hábitos consumistas, criando por meio da publicidade uma identidade positiva para os cidadãos consumidores que se vêem e passam a ser vistos como indivíduos "vencedores" ou criando frustrações e revoltas entre aqueles que não podem se inserir na sociedade de consumo e que, não raro, são vistos e tratados pelos socialmente incluídos como cidadãos de segunda classe, "derrotados".
"A cultura audiovisual volta a ocupar um espaço privilegiado no cotidiano das pessoas, e o mundo das crianças e dos adultos começa mais uma vez a se confundir."
(Trecho da voz off
no documentário A invenção da Infância)
Além da propaganda, às crianças são expostas às novelas e outros programas considerados pelos educadores, legisladores e outros sujeitos sociais como inadequados à infância devido à veiculação de conteúdos inapropriados como: cenas de violência explícita, truculência, desrespeito aos direitos humanos exibidas cotidianamente nos telejornais ou na teledramaturgia estimulo a erotização precoce por meio de expressões, músicas, gestos e danças divulgados em programas voltados ao público infantil etc.
Não raro, algumas celebridades televisivas chegam mesmo a transmitirem mensagens contrárias aos valores democráticos, negando na prática os valores que garantem às crianças direito de proteção frente às agressões concretas e simbólicas produzidas no mundo adulto:
"Eu vejo filme de terror que é Cine Trash, que passa no 13. (...)
Tem um cara né, que mata as pessoas assim. (...)
Ele arrancou o próprio rosto dele né, assim, arrancou todo o rosto, e agora, ele mata as pessoas pra arrancar o rosto delas, assim."
(Carolina, 8 anos, SP)
"Novela, Jornal".
(Geomar, trabalhador infantil de uma pedreira)
4. Dois retratos da infância no Brasil: diferenças e semelhanças
"Uma época na qual crianças podem trabalhar como adultos, consumir como adultos, partilhar das informações como adultos, não reconhece o mundo infantil como diferente ou especial. Um mundo onde adultos e crianças compartilham da mesma realidade física e virtual, é um mundo de iguais."
(Trecho da voz off no documentário A Invenção da Infância)
"Eu acho que eu levo uma vida de gente grande."
(Carolina, 8 anos, SP)
"Eu acho que eu não cheguei ainda na idade de ser adulto. (...) eu acho que eu sou criança ainda."
(Geomar, trabalhador infantil de uma pedreira)
A abertura do documentário ocorre com uma animação bastante simples, mas bem criativa que vai sugerindo na tela uma representação imagética das descobertas narradas pela voz off que marcaram a Idade Moderna: o heliocentrismo, a perspectiva na pintura, a imprensa, as Grandes Navegações que desencadearam a chegada dos europeus no continente americano.
A despeito de o Brasil, enquanto unidade política não existir em 1500 e do território que na atualidade forma o nosso país não ter sido exatamente "descoberto" por Cabral este é o mote que serve à diretora para introduzir o cenário principal da trama onde serão tecidas as impressões sobre as várias faces da infância brasileira nos dias de hoje.
A câmera "passeia" por duas paisagens contrastantes: municípios agrários na região Nordeste do país , com casarios antigos e deteriorados, com pessoas simples sem acesso a água encanada (visível pelas latas e baldes sobre as cabeças de mulheres e meninas), o burro como transporte, a estrada de terra. Paralela a esta paisagem os expectadores vêem na tela os grandes arranha-céus, trens, um "mar" de automóveis ocupando as grandes avenidas da cidade de São Paulo.
Essa introdução polarizada entre riqueza e pobreza, desenvolvimento e subdesenvolvimento, fartura e escassez, Nordeste e Sudeste não é gratuita, ela informa aos nossos olhos os espaços contrastantes onde vivem as crianças brasileiras e as diferentes infâncias vivenciadas por elas.
Morreram de precisão (por falta de recursos) também. Porque eu não vou dizer que não morreram. Porque eu não tinha condições de zelar (de alimentar, oferecer cuidados médicos etc.), né?
(Depoimento de Rosália no documentário A Invenção da Infância)
No primeiro cenário onde a falta de recursos e infra-estrutura impera, ouvimos depoimentos de várias mulheres sobre a perda de seus filhos em tenra idade. Assim, Balbina, Raimunda, Flor, Rosália e as mulheres na fila d"água, em sua maioria, esquálidas, sofridas e sem esperanças, traçam o retrato das mães nordestinas dos municípios desassistidos, obrigadas a se acostumar com a morte de seus rebentos.
Porque esses aí não eram prá ser meus, eram dele. Deus me deu e Deus tomô. Né?
((Depoimento de Rosália no documentário Invenção da Infância)
Elas são apresentadas a nós realizando uma matemática macabra na qual ao mesmo tempo em que o resultado da soma é uma incrível quantidade de nascimentos para os padrões sulistas atuais, no cômputo geral, entre os que nascem e os que vingam, os prejuízos são imensos: Rosália teve 28 filhos, mas apenas 6 sobreviveram.
As crianças morrem desnutridas, desidratadas, morrem abandonadas sem acesso mínimo às políticas públicas de proteção à infância.
Enquanto narram as perdas de suas crianças, um cortejo fúnebre infantil passa pela tela carregando um pequeno caixão e segue em meio a aridez do ambiente, denunciando-nos as inúmeras carências do lugar. Aos expectadores não restam dúvidas de que a morte nesses municípios empobrecidos do Nordeste faz parte do cotidiano das pessoas, ceifa a vida dos bebês e não poupa as crianças que sobreviveram de terem, freqüentemente, contato com ela.
No segundo texto apresentado pela narração da voz off os expectadores são transferidos para o pólo oposto. As crianças antes sujas, desnutridas e abandonadas dão lugar à infância burguesa: crianças pequenas aparecem sorrindo, bem vestidas, bem nutridas, abrigadas em local seguro e confortável em uma atividade de pintura com liberdade para experimentar. As cores mudam radicalmente: da aridez do marrom do chão de terra batida do sertão, a tela é colorida pelos belos desenhos infantis.
O narrador informa-nos que a idéia de infância "como uma época especial para cada ser humano" tal como é concebida na atualidade, surgiu entre os séculos XV e XVI. Foi a partir daquele período que o mundo adulto (ou pelo menos uma parcela dele) passou a dedicar mais tempo, atenção e cuidado para esses seres tão frágeis.
Novo corte na tela, desta vez para comparar a vivência da infância por crianças de classe média e alta com a das crianças excluídas do sertão baiano.
Meninos e meninas aparecem brincando e ou falando de suas brincadeiras em seus ambientes. As crianças de classe média e alta depõem em parques ou sentadas à beira da piscina. Em suas falas fazem referências a brinquedos como patins, videogame, estes ausentes nos espaços das crianças dos municípios nordestinos empobrecidos, que buscam brechas e energias para brincar além do tempo empregado na escola e no extenuante trabalho:
"Só dá tempo de brincadeira de tardinha, de manhã tá na escola e a tarde tá trabalhando, pára às cinco horas, sobra uma hora de relógio."
(Sivanildo - trabalhador infantil de uma pedreira)
"Quando eu trabalho o dia inteiro eu vou brincar de bola e depois tomo o meu banho e vou pra escola."
(Geomar, trabalhador infantil de uma pedreira)
Nova introdução da voz off, sempre seguida de uma animação ilustrativa do texto narrado, explicando que um dicionário francês do século XVIII definia o termo "criança" como um modo cordial para saudar, agradar ou levar alguém a fazer algo. Assim soldados expostos ao perigo ou trabalhadores poderiam ser ordenados e comandados de modo carinhoso. Os soldados da primeira fila, pelo risco maior na guerra, eram chamados de "crianças perdidas".
Este é o mote para que a diretora foque a atenção dos expectadores na discussão da infância roubada das crianças brasileiras em situação de risco, cujo trabalho infantil de meninas e meninos é explorado nas pedreiras, no corte do sisal e em outras atividades extenuantes e perigosas.
Há também uma crítica às agendas impostas às crianças de grupos sociais mais abastados que, como mini-executivos, são expostas a inúmeras atividades extracurriculares (na cena o destaque é dado ao balé) que as cansam e diminuem seus espaços e tempos para brincar livremente . Em ambos os casos percebemos o desejo delas de serem somente crianças, de que a infância de fato seja vista e tratada pelos adultos como uma verdadeira "fase especial", diferenciada do mundo adulto, especialmente em relação ao trabalho e aos compromissos extracurriculares.
"Eu acho que eu trabalho porque não tem jeito, tem de trabalhar mesmo.
O meu trabalho tá sendo quase o mesmo dos adultos. É uma vida de adulto."
(Geomar, trabalhador infantil de uma pedreira)
"Carrega um pouco esse, esse monte de coisa que a gente tem prá fazer."
(Ana Lívia)
"Porque os pais têm dias que não podem gastar. Só dá pra fazer a feira, assim mesmo fica faltando coisas. Não pode comprar roupa. E as crianças trabalham aqui, em três semanas, se ganhar dois reais, com três semanas compra uma feira boa. (...)."
(Adriano - trabalhador infantil de uma pedreira)
"E fica sem estudar. E sem trabalhar mais (quando se corta no sisal)".
(Sivanildo - trabalhador infantil de uma pedreira)
Novo bloco da voz off introduz as invenções do século XVI dando destaque para a imprensa e a associação entre escolarização e infância, quando a escola tornou-se a "quarentena" obrigatória para as crianças, antes de serem consideradas aptas a entrar no mundo adulto.
Novamente a diretora opõe dois retratos da infância no Brasil. E nos faz refletir: quem efetivamente tem garantido o direito à educação?
Enquanto na tela podemos ver crianças incluídas em uma sala de aula com boa infra-estrutura, exercendo seu direito de aprender e ampliar seu "capital cultural"
, podemos perceber na fala e espaços dos trabalhadores infantis que esse direito quando é exercido se dá às duras penas:
"Trabalho à tarde e estudo de manhã."
(Sivanildo - trabalhador infantil de uma pedreira)
"Criança não é que nem adulto. É, eu acho que as crianças não podiam trabalhar não."
(Geomar - trabalhador infantil de uma pedreira)
"Mas não tem jeito."
(Sivanildo - trabalhador infantil de uma pedreira)
5. Diferenciadas pelo capital econômico e pelo capital cultural
"Eu acho que o que eu posso fazer é depois de grande não trabalhar por aqui. Estudar muito pra aprender a ler e a escrever e saí daqui pra outro lugar."
(Geomar - trabalhador infantil de uma pedreira)
"Ah, eu acho que as outras crianças que não fazem, por exemplo, não fazem inglês estão um pouco em desvantagem né, que se elas quiserem viajar pro exterior para fazer uma faculdade, uma coisa assim, elas não vão ter a base pra falar."
(Ana Lívia)
A vida de Ana Lívia, Carolina, Beatriz e de outras crianças socialmente incluídas distancia-se da idéia de infância como uma fase onde "ser criança é não ter qualquer outro compromisso que vá além do gozo puro e simples de sua inocência". Essas crianças além das atividades escolares têm de seguir horários rígidos para cumprir as exigências que são impostas a elas: aprender inglês em escola de línguas, tênis, vôlei, balé, sapateado, ginástica olímpica, natação...
A exagerada rotina imposta a essas crianças permite realizar com os alunos uma discussão sobre o excesso de atividades que sobrecarregam as crianças pertencentes a determinados grupos sociais, especialmente aqueles cujas famílias têm maior poder aquisitivo. Esta é uma questão que preocupa pais, educadores, psicólogos, médicos, dentre outros profissionais. As agendas das crianças desses grupos podem ser comparadas a de grandes executivos, pois num único dia precisam cumprir horários rígidos para realizarem diversas atividades.
As polêmicas a esse respeito giram em torno das seguintes discussões: prejuízos à saúde, provocados pela rotina estressante imposta à criança que não tem tempo livre para brincar e se divertir sem se preocupar com horários o alto custo de cursos e atividades extra-escolares para o orçamento familiar a eficiência desses estímulos em idade tão precoce para aumentar as competências/habilidades das crianças etc.
Neste sentido, a vida dessas crianças se aproxima do mundo adulto, assim como a exposição delas aos valores e práticas de competitividade e consumo. Entretanto, crianças socialmente incluídas como elas, pertencentes a famílias com recursos financeiros, têm acesso a livros e outros bens culturais que lhes possibilitam, na vida adulta, terem maiores chances de escolhas.
Assim é importante problematizar que esta é uma realidade de um determinado grupo de crianças há outras que têm rotinas estressantes e estafantes porque são obrigadas a empregar o seu tempo para auxiliar na renda familiar e cuja agenda se aproxima a dos operários de fábrica. Esse é o caso das crianças como Geomar, Sivanildo, Zé Mário, Adriano e tantos outros meninos e meninas, cujo trabalho é explorado como se fossem adultos.
A vida dessas crianças é exemplar de como a infância de indivíduos socialmente excluídos está distante do modelo de infância como uma 'fase de ouro' da vida dos seres humanos. Suas vidas também nos revelam como direitos básicos que deveriam ser assegurados são sistematicamente negados a elas, raramente possibilitando que construam alguma alternativa de um futuro melhor.
Várias delas resistem à exclusão sistemática e insistem em freqüentar uma escola. Mas será que a diversidade de conhecimento, experiências e, portanto, de visão de mundo dessas crianças que carregam uma bagagem construída pela sua dura vivência e luta pela sobrevivência é considerada na escola?
Será que a escola consegue de fato fazer a diferença na vida de crianças como Geomar que deseja aprender e conseguir na vida adulta viver melhor do que viveu a sua infância de trabalhador infantil?
O que o mundo adulto, a sociedade civil, as autoridades públicas de nosso país devem fazer para garantir os direitos de infância para crianças como Sivanildo, Geomar, Zé Mário, Adriano...?
6. É preciso assegurar os direitos da infância a todas as nossas crianças
"Na época das grandes descobertas, o homem sonhou que o mundo poderia ser melhor. E tentou inventar um ser humano melhor, capaz de conduzir estes ideais juntamente com a sua vida. A invenção da infância fazia parte deste sonho." (Trecho final da voz off no documentário A Invenção da Infância)
Psicólogos, educadores, médicos dentre outros profissionais vêm chamando a atenção dos pais de classe média e a alta para que avaliem as agendas de seus filhos, reflitam sobre os inúmeros cursos, treinos e demais atividades extracurriculares que lhe são impostas desde a mais tenra idade. É preciso atentar para a idéia de que viver uma infância saudável é também ter tempo e espaço para brincar livremente.
Há também uma crescente discussão sobre a necessidade de os pais contribuírem para delimitar de modo mais claro as fronteiras entre o universo infantil e o adulto. Pois um mundo que iguala os não iguais, onde adultos 'partilham das mesmas informações, realidades físicas e virtuais com suas crianças', pode não assegurar a elas uma infância sadia, pode não conseguir protegê-las dos diversos riscos que as rondam.
A indústria de pedofilia na rede, por exemplo, é só um dos riscos visíveis que rondam muitas crianças que usam a Internet sem controle e acompanhamento de seus pais. Mas, as crianças estão cada vez mais expostas aos valores de consumo, a uma cultura audiovisual, especialmente aos programas de tevê, cujos interesses econômicos e financeiros se sobrepõem aos direitos da infância.
"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (Artigo 227 da Constituição Federal).
As crianças de classe média e alta contam com recursos de suas famílias que garantem acesso a saúde, à educação, à alimentação, lazer, à cultura etc. E quanto às crianças brasileiras, cujo trabalho é explorado, que estão expostas à rotina estafante da produção, aos riscos de acidentes no trabalho como se fossem trabalhadores adultos? O que é necessário fazer para garantir os direitos delas?
Promotores, fiscais do Ministério do Trabalho e outras autoridades públicas, juntamente com vários sindicatos de trabalhadores e parcela cidadã da sociedade comprometida com a proteção e garantia do direito de nossas crianças vêm agregando esforços para coibir e punir todos aqueles que exploram o trabalho infantil.
Entretanto, isso não é suficiente. É preciso que o Estado e outras entidades desenvolvam políticas públicas eficientes que garantam a permanência na escola na escola, o acesso aos cuidados médicos e todos os demais direitos constitucionais também às crianças de famílias em situação de risco.
Em 1996, em Retirolândia, no sertão baiano, um dos municípios documentados no curta A Invenção da Infância, foram implementadas algumas ações positivas da sociedade civil para combater o trabalho infantil e favorecer a permanência das crianças de famílias de baixa renda nas escolas. Trata-se do projeto social Bode- Escola, financiado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), pelo Movimento de Organização Comunitária (MOC) - uma organização não-governamental -, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef) e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Retirolândia.
Esse projeto consiste no empréstimo de quatro cabras matrizes e um bode reprodutor para cada família que possua crianças menores de 14 anos trabalhando com sisal. Em contrapartida, os pais devem retirar as crianças desse trabalho e mantê-las na escola. O único trabalho permitido às crianças do projeto Bode-Escola é cuidar das cabras. Após quatro anos, as cabras matrizes devem ser devolvidas. No início, o projeto selecionou cinqüenta famílias, atendendo cerca de duzentas crianças. Dois anos depois de sua implementação, o Bode-Escola já apresentava resultados positivos. A grande vantagem é a garantia de geração de renda para as famílias, dissociada do trabalho infantil e vinculada à ida das crianças à escola.
Que tal agora pesquisar sobre outros projetos ou políticas públicas implementados pelo Estado ou por entidades da sociedade civil?
Procure conhecer os programas de renda-mínima ou transferência direta de renda como o Bolsa-Família ou o programa desenvolvido pela Fundação Abrinq chamado Prefeito Amigo da Criança.
Depois faça campanhas de esclarecimento na escola sobre ações de combate infantil e de proteção à infância.